cover.jpg
portadilla.jpg

 

 

Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2006 Anne Kristine Ohlrogge.

© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.

A valsa do Diabo, n.º 17 - Fevereiro 2014

Título original: The Devil’s Waltz

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá

Publicado em português em 2009

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.a.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), feitos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-5035-4

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

 

 

Para Gackt, o mais delicioso vampiro norueguês de 450 anos, estrela do rock japonês e patife georgiano vivo hoje em dia. Extraordinariamente belo, é a melhor inspiração por estes lados.

Arigato, Gackt-san.

Um

 

A honorável menina Annelise Kempton não suportava os idiotas. Infelizmente, tivera o azar de ter de o fazer demasiadas vezes e de, ainda por cima, ter de ser educada diante da estupidez.

Contudo, a vida era assim quando se carecia de fortuna, se tinha quase trinta anos, se era solteira, não propriamente uma beleza e demasiado inteligente para ser mulher.

Aceitara-o há muito tempo, com a sua habitual falta de autocompaixão. O seu pai, um esbanjador, não fora capaz de lhe arranjar um casamento adequado, porém, a sua madrinha, lady Prentice, conseguira apresentá-la à sociedade numa temporada, quando tinha dezassete anos. O que, tal como comentara a sua irmã mais velha, Eugenia, era um perfeito esbanjamento, visto que Annelise não era o tipo de rapariga que pudesse atrair muitos pretendentes.

A própria Eugenia, conhecedora das suas limitações, recusara-se a ser apresentada à sociedade e casara-se com um vigário de Devon, onde era feliz ocupando-se do seu lar, do seu marido, da igreja e da paróquia.

No entanto, Annelise, que era muito mais alta do que a maioria dos jovenzinhos indolentes da alta sociedade e infelizmente franca nas suas opiniões, não recebera nenhuma proposta e a sua madrinha preferira dedicar os seus esforços a Diana, a sua irmã mais nova. No final, Diana triunfara, casando-se com um viúvo pomposo, gorducho e com três filhos, aos quais se apressara a dar mais quatro irmãos.

Enquanto isso, Annelise ficara em casa e vira o seu pai a perder tudo o que tinha, incluindo a vida, num dia em que montara a cavalo bêbado.

Lady Prentice voltara a intervir, porém, não pudera fazer grande coisa. Diana tê-la-ia acolhido de bom grado na sua casa, porém, o seu marido era um indolente e os meninos, uns rebeldes e ela não teria feito outra coisa senão ocupar-se da prole, que crescia de ano para ano.

Eugenia também a teria aceitado em sua casa, já que sabia qual era o seu dever, mas duas mulheres com tanto carácter dificilmente poderiam ter vivido sob o mesmo tecto e, além disso, a casa de Joseph mal dava para albergar os seus dois filhos e os seus três serventes. Não havia espaço para uma tia solteirona.

E a honorável menina Kempton não podia ganhar a vida a trabalhar nos ofícios próprios de mulheres de condição ligeiramente inferior à sua. Poderia ter sido dama de companhia ou preceptora, contudo, a sua ascendência remontava aos tempos da Magna Carta e nenhum Kempton podia receber dinheiro em troca dos serviços que prestasse.

Podiam, no entanto, aceitar a hospitalidade dos outros. E, nos cincos anos decorridos desde a morte do seu pai, Annelise vivera com os duques de Warwick, fora uma boa amiga para a duquesa, que se encontrava doente, e tentara impedir que os seus olhos mortiços conseguissem ver as infidelidades do seu marido. Depois do falecimento da duquesa, deixara de haver lugar para ela e mudara-se para a casa dos Meredith, em Yorkshire, onde passava o seu tempo a entreter uma senhora idosa meio senil, falando em francês com os seus netos e envelhecendo ela também.

No entanto, a senhora idosa morrera, como costumava acontecer com as senhoras idosas, e os meninos tinham crescido e perdido interesse pelo francês, dado que ambos os países estavam, como de costume, em guerra, e Annelise tivera de se mudar novamente, daquela vez para a casa londrina de um tal senhor Josiah Chipple e a sua filha, Hetty, rapariga de uma beleza notória. Lady Prentice, a arquitecta que se escondia por trás daqueles arranjos, inventara uma amizade de toda uma vida entre a mãe de Annelise e a avó de Hetty Chipple, ignorando o facto de uma das avós de Hetty ter sido taberneira e a outra agricultora.

De qualquer modo, pouco importava. Ninguém iria incomodar-se em comprovar a verdade daquele embuste inofensivo e Hetty Chipple estava prestes a fazer a sua estreia diante dos círculos sociais, que cairiam sobre ela como uma alcateia de lobos. Era jovem, bonita e o que lhe faltava em educação e linhagem sobrava-lhe em fortuna. Havia dúzias de jovens dispostos a ignorar o cheiro do comércio em troca de uma muito precisada injecção de dinheiro e a questão do refinamento remediava-se numa ou duas gerações, enquanto o dinheiro da menina Chipple poderia durar muitíssimo mais se administrado com cuidado.

A sua primeira visita à casa não foi muito tranquilizadora para a honorável menina Annelise Kempton. Junto à imponente porta principal havia uma lápide de mármore com a inscrição «Chipple House» e o hall estava tão cheio de estátuas de mármore que era preciso mexer-se com muito cuidado para não tropeçar nelas. Tudo aquilo, apesar das suas pretensões de harmonia e bom gosto, produzia um efeito geral de caos.

Fizeram-na entrar num pequeno salão decorado num tom errado de azul e cujos móveis eram todos muito novos, muito lustrosos e muito confortáveis. Sentou-se no sofá cerúleo, com as costas rígidas como um pau e as longas mãos enluvadas cruzadas sobre o colo, enquanto pensava em tirar os óculos para moderar o efeito da moldura rococó que enfeitava as paredes. Olhou para cima como se procurasse um conselho divino e deparou-se com um tecto pintado que distava muito de se assemelhar aos frescos dos mestres italianos que tinham levado a sua arte ao extremo da perfeição. Voltou a fixar os olhos no seu colo, olhou para as luvas cinzentas de pele que repousavam sobre a sua saia de lã cinzenta e suspirou.

Não era absolutamente vaidosa, mas sem dúvida um vestido novo de vez em quando não teria sido pedir demasiado. Claro que, naturalmente, a sua presença era sempre a de uma convidada, não a de uma empregada, como tal não podia aceitar algo tão pessoal como um presente. Lady Prentice financiara o seu vestuário quando o seu pai morrera, tudo de tecidos da melhor qualidade, daqueles que duravam eternamente e nunca se desgastavam, portanto Annelise passava a sua existência cinzenta envolvida em diversos tons de cinzento e, certamente, seria assim até que morresse.

Passara-lhe pela cabeça comer de forma exagerada para que a roupa deixasse de lhe servir, mas infelizmente tinha tal constituição que o seu corpo magro nunca engordava um único quilograma. E, quando engordava, era apenas nos seios, já de si grandes, e não achava graça nenhuma a que aquela parte da sua anatomia ficasse tensa sob o insípido tecido cinzento da sua vestimenta.

Levantou a mão e subiu um pouco os óculos. Precisava deles sobretudo para ler, mas tinha a impressão de que lhe davam um ar distinto que combinava com a sua cara fina e anódina e o seu penteado severo. Parecia o que era: uma virgem de bom berço sem nenhuma beleza e, portanto, indigna de qualquer atenção.

Voltou a descer os óculos pela ponta do nariz e suspirou novamente.

Uma mulher com menos classe teria relaxado, pelo menos estando sozinha, contudo, a honorável menina Annelise Kempton não era assim tão indolente. Permaneceu sentada, à espera, até que ouviu um ruído de vozes e gargalhadas procedente do hall, para além das portas fechadas.

Estavam no fim da manhã, como tal não era a melhor hora para as visitas, contudo, tinham-lhe dito, na verdade, tinham-lhe pedido, que fosse àquela hora, e fora o que fizera. As suas roupas já tinham sido levadas para um quarto de hóspedes e a única coisa que faltava fazer era conhecer o seu anfitrião e a sua jovem filha para poder decidir quanto trabalho tinha pela frente.

As pessoas tinham alguma dificuldade em qualificar a sua posição nas suas casas. Às vezes, punham-na num dos melhores quartos de convidados, outras, num quarto apenas um pouco melhor do que o que uma criada teria ocupado.

Depois de dar uma vista de olhos atenta à decoração da Chipple House, esperava que, daquela vez, acontecesse a última hipótese. Seria difícil conviver com a propensão para as cores garridas do senhor Chipple e poucas pessoas se incomodavam em decorar os quartos dos serviçais além do absolutamente necessário. Desde que tivesse um quarto próprio, estaria contente. Sentia aversão por partilhar a cama com uma desconhecida, sobretudo porque a maioria das pessoas que conhecia não partilhava a sua afeição de se banhar com frequência. Era a única coisa em que insistia e, normalmente, faziam-lhe a vontade.

Ouviu uma voz de homem, pausada, encantadora e demasiado baixa para que distinguisse o que dizia, mas compreendeu imediatamente que o seu tom era irresistível. Aquele não era o seu anfitrião. A rapariga que se ria com aquela gargalhada estridente e pouco favorecedora só podia ser a sua jovem pupila, porém, não havia dúvida de que se ouvia também a gargalhada forte de outro homem, um homem que devia ser o senhor da casa. Josiah Chipple era um homem que subira a pulso e cuja forma de falar deixava transparecer as suas origens. Annelise perguntou-se se também lhe pediriam que trabalhasse naquele aspecto.

Estava disposta a cumprir qualquer trabalho que lhe pedissem, mas isso não significava que tivesse de gostar dos seus anfitriões. Sorriria, assentiria com a cabeça e comportar-se-ia bem, a menos que se excedessem em alguma situação, e depois a menina Chipple casar-se-ia gloriosamente e a honorável Annelise Kempton avançaria para a paragem seguinte no caminho da vida.

Estava a tornar-se numa queixosa, pensou, e afugentou aquele pensamento desconsolado. Estava em Londres, a cidade mais interessante do mundo. Sem dúvida estaria confortável, quente e bem alimentada. Naquela casa devia haver imensos livros para a manter ocupada quando não estivesse a certificar-se de que a menina Chipple se comportava como era devido. E desse modo não dependia da caridade de ninguém, o que era sempre uma sorte.

Ouviu o golpe da porta principal ao fechar-se e um ruído de passos que se dirigiam para a pequena sala onde esperava e aguardou, esperando ouvir o estrépito de uma estátua ao cair. Contudo, ouviu apenas vozes.

A menina Hetty Chipple não estava contente com a sua presença.

– Porque tenho de fazer isto, pai? – perguntou num tom queixoso.

Apesar de soar abafada pelas portas grossas e pelo seu ligeiro gemido, a sua voz não carecia de charme. Tinha a dicção precisa, desprovida de inflexões, própria de uma rapariga bem-educada. Pelo menos, Annelise não teria de suportar uma rapariga demasiado tosca.

A voz densa do seu pai era muito menos suave.

– Porque eu o digo, querida – disse. – Vais empreender uma nova vida, muito mais importante do que imaginas, e há todo o tipo de regras e truques dos quais um velho lobo do mar como eu não sabe nada. Quero o melhor para ti, Hetty, e tenciono pagar por isso. Além disso, a honorável menina Kempton faz isto por simples bondade.

– Ah! – exclamou a menina Hetty.

«Ah!», pensou a menina Kempton com uma careta. E depois levantou-se elegantemente quando a porta se abriu e viu a rapariga pela primeira vez.

Dizer que Hetty Chipple era uma jovem muito bonita teria sido uma injustiça enorme. Era linda, do topo dos seus caracóis loiros até aos sapatinhos dos seus pequenos pés. A sua cintura era minúscula, os seus seios agradáveis, os seus olhos de um azul celeste e brilhante, era óbvio que o seu pai tentara pintar aquela sala a condizer com eles, e a sua boca era como o arco do Cupido.

Entrou na sala com uma graça tão consumada que Annelise, sempre elegante, de repente se sentiu trôpega e desajeitada. Quando sorriu cortesmente, mostrou uns dentes brancos e perfeitos.

Josiah Chipple era exactamente como imaginara: um homem corrente e severo, vestido com uma simples casaca de um simples tecido castanho. Tinha as mãos grandes e toscas, um nariz partido pelo menos uma vez, sobrancelhas abundantes e queixo tenaz.

– Minha querida menina Kempton! – exclamou com o seu denso sotaque de Lancashire. – Honra o nosso humilde lar. Lamentamos tê-la feito esperar, tendo sido tão amável ao aceitar o nosso convite. Tivemos uma visita inesperada...

– O meu futuro marido – acrescentou Hetty.

O seu pai lançou-lhe um olhar de recriminação.

– Bom, Hetty, não nos precipitemos. Podes escolher quase quem quiseres, não faz sentido lançares-te ao primeiro potro que entra no prado.

– Não é o primeiro... mas o mais bonito – respondeu Hetty com ar desafiante.

– Veremos. A temporada ainda mal começou. Porque não mostras à menina Kempton os seus aposentos? Deve estar esgotada da sua viagem.

Annelise não tivera oportunidade de dizer uma palavra, o que raramente acontecia na sua infeliz existência.

– Venho de casa da minha madrinha – disse, – em Kensington. Não é muito longe. Estou encantada de o conhecer, senhor Chipple – já que ele não ia fazer as honras, teria de lhe dar um empurrãozinho. – Fico muito contente por me ter convidado. E esta deve ser a menina Hetty.

– Quem haveria de ser? – respondeu Hetty.

Annelise manteve o seu sorriso firmemente desenhado na cara, ocultando os seus dentes apertados.

– Com efeito, e é encantadora – disse com doçura. – Mas aprenderá que, nos círculos da alta sociedade, as apresentações costumam demorar um certo tempo. É aborrecido, mas necessário.

Josiah Chipple sorriu, alheio ao seu próprio erro.

– Vês, Hetty? Ela ensinar-te-á a comportares-te. Devia tê-las apresentado primeiro, claro. Meninas, porque não sobem e tu, Hetty, ajudas a menina Kempton a instalar-se? Tenho a certeza de que têm muitas coisas em comum.

Treze anos afastavam as duas «meninas», pensou Annelise, e certamente a única coisa que tinham em comum era a sua nacionalidade e o seu género. E provavelmente muitos jovens cavalheiros poriam reparos à segunda afinidade.

– Seria muito agradável – disse. – Queria refrescar-me um pouco.

– Eu ia dar um passeio a cavalo pelo parque – protestou Hetty.

– Podes fazê-lo depois. Eu gostava que a menina Kempton também pudesse deleitar-se com um passeio.

– Não monto a cavalo – disse Annelise, o que era ao mesmo tempo verdade e mentira. Não montava um cavalo desde a morte do seu pai e não tinha intenção de voltar a fazê-lo.

Josiah franziu o sobrolho.

– Não monta a cavalo? – repetiu. – Terá de aprender. Encarregar-nos-emos disso, não é verdade, Hetty?

– Não sei para que vamos incomodar-nos. Não vai estar aqui tanto tempo assim e eu posso sair para passear com um dos rapazes do estábulo.

«E ainda por cima indelicada», pensou Annelise.

– Agradeço a sua amabilidade – disse, dirigindo subtilmente as suas palavras a Josiah, – mas tenho receio de cavalos e não me parece que consiga superá-lo – aquilo era uma enorme mentira. Continuava a adorar cavalos, até o potro preto que atirara o seu pai ao chão. Não fora culpa do animal, de facto, transportara o seu pai cem vezes estando igualmente bêbado. Contudo, no final, a sua sorte acabara.

– A menina Hetty e eu podemos ir dar um passeio a pé pelo parque mais tarde – acrescentou. – Enquanto isso, eu adoraria ter oportunidade de a conhecer melhor.

A menina Hetty estava prestes a voltar a abrir a sua boca perfeita quando o seu pai a interrompeu.

– Sobe com a menina Kempton, Hetty – disse e havia uma nota de aço sob a sua voz áspera. Um aviso que a sua filha teve a sensatez de não desobedecer.

Hetty saiu garbosamente do pequeno salão sem se incomodar em olhar por cima do seu bonito ombro para ver se Annelise a seguia.

– É uma menina com muito carácter – disse carinhosamente o senhor Chipple, – mas é boa rapariga. Tenho a certeza de que dentro de pouco tempo serão grandes amigas.

– Sem dúvida tem razão – disse Annelise fracamente e começou a andar atrás daquela menina mimada.

Sim, era uma pena que fosse demasiado nobre para ganhar a vida, pensou, enquanto subia lentamente as amplas escadas de mármore.

Hetty estava à sua espera no patamar, batendo com o pé no chão, cheia de impaciência, e Annelise teve a fugaz impressão de que era possível que tentasse empurrá-la pelas escadas.

Se tentasse, iria com ela, pensou friamente.

Chegou ao patamar e dedicou à rapariga o seu sorriso mais despreocupado. A rapariga chegava-lhe apenas aos ombros e Annelise sentiu-se como uma gigante.

Hetty levantou os seus grandes olhos azuis para ela.

– Minha mãe, que grande é, eh?

O seu comentário surtiu o efeito contrário ao que pretendia. Pelo menos, a rapariga era suficiente inteligente para saber onde atacar. Muito poucas pessoas sabiam que Annelise se sentia complexada em relação à sua altura, porém, Hetty intuíra-o desde o primeiro momento.

O desafio ia valer a pena.

– Bastante grande, sim – respondeu Annelise laconicamente. – Mas confio em que tenhas sensatez suficiente para não fazer comentários pessoais a desconhecidos. Sou muito consciente de que não estás contente com a minha chegada e de que pensas demonstrá-lo de todas as formas possíveis. No entanto, na sociedade elegante, não se fazem comentários a respeito dos atributos físicos dos outros. Um elogio geral costuma ser suficiente.

Hetty ficou a olhar fixamente para ela.

– Não tenho porque ser amável contigo. Não passas de uma empregada.

– De facto, não o sou. As pessoas da minha classe não trabalham para ganhar a vida. Vou apenas ajudar-te para fazer um favor à minha madrinha. Considero-te a minha obra de caridade.

Hetty pestanejou e Annelise teve a precaução de se afastar um pouco da traiçoeira escada de mármore.

– Como te atreves...? – balbuciou a rapariga.

– Minha querida menina, sou a honorável menina Annelise Kempton, filha de um barão e neta de um conde. O nome e o escudo da minha família apareciam no Domesday Book muito antes de qualquer membro da tua ter aprendido a ler. Sugiro-te que penses cuidadosamente no que te atreves a dizer ou a fazer. Não acredito que o teu pai fique contente por saber que insultaste a tua convidada. Teve muito trabalho para combinar esta visita.

O lábio inferior de Hetty tremeu e Annelise recordou que, apesar da sua arrogância, tinha apenas dezassete anos e era muito menos segura de si mesma do que aparentava.

– Haja paz – disse suavemente. – Só quero ser de ajuda e garanto-te que não sou nenhuma preceptora nem um monstro. A minha tarefa consiste em ajudar-te a atrair a atenção das pessoas adequadas e garantir o casamento que mereces. Possuis uma fortuna assombrosa, sobretudo tendo em conta que és a única herdeira do teu pai. Além disso, sabes perfeitamente que és muito bonita.

Hetty começava a recuperar forças para se defender.

– Não sou bonita, sou linda! Uma das maiores belezas de todos os tempos, melhor do que as irmãs Gunning, melhor do que...

– Não precisas de ser melhor do que as irmãs Gunning: elas não têm dinheiro para atrair um marido de bom berço. Com a tua cara e as tuas circunstâncias terás muito sucesso, assim que te dê um pouco de... brilho.

– Eu não preciso...

– Até um diamante raro precisa de um pouco de brilho – disse Annelise com firmeza. – Agora, mostra-me o meu quarto e fala-me desse jovem que conheceste e que pode ser um partido tão bom. Não preciso de perguntar quem caiu rendido aos teus pés. Sem dúvida caíram todos. Mas podes permitir-te ser muito exigente no que respeita a escolher marido. Não precisa de ser rico, mas o teu pai prefere que tenha um título e tem de possuir um bom carácter.

– Já o escolhi – respondeu firmemente a menina Hetty. – E ninguém vai dizer-me que não pode ser meu.

Era sobre aquele assunto que os ouvira a discutir antes, pensou Annelise.

– Esse cavalheiro expôs as suas intenções?

– Não é preciso. Tu mesma o disseste, todos os homens de Londres estão a meus pés. Posso escolher aquele que me agrada e escolho-o a ele.

– E quem é exactamente esse modelo de virtudes que conquistou o teu coração? – inquiriu Annelise, e seguiu a sua pupila por um amplo corredor horrendamente decorado até que chegaram à porta do seu quarto. Hetty abriu-a com um gesto dramático completamente inútil, visto que não havia nada de dramático no espaçoso quarto que lhe oferecia.

– É visconde – disse. – Ou pelo menos será quando o seu tio morrer. E não tem um tostão, mas joga muito bem às cartas. Além disso, eu tenho dinheiro suficiente para os dois.

– Isso é verdade.

– E é muito bonito. Mereço um marido bonito, não é verdade?

– Não há razão para que não o tenhas – respondeu Annelise e perguntou-se como ia abordar a questão de que os homens extremamente bonitos raramente se interessavam apenas por uma mulher.

– Então, será meu.

– Quem?

– Christian Montcalm.

Se Annelise fosse dada a desmaiar, teria caído sobre o garrido tapete naquele preciso momento.

Por sorte, nunca desmaiara em toda a sua vida, portanto limitou-se a fechar a porta, recostou-se contra ela, olhou para a desafiante menina Hetty e disse:

– Não.

Dois

 

– Como? – perguntou a menina Hetty com uma voz gélida que teria feito justiça a Annelise.

– Christian Montcalm está descartado. A sua reputação é notória e não é pretendente para uma jovem inocente como tu – disse. – Sei que é um homem muito bonito, vi-o. Mas também é um folgazão frívolo e degenerado, um jogador, um Don Juan, um enganador e, mesmo que apenas metade das histórias que se dizem sobre ele sejam verdade, estarias melhor morta do que casada com semelhante monstro depravado.

– Não sejas ridícula. Não é nenhum monstro. É absolutamente encantador.

– Isso é o mais perigoso dele – disse Annelise com severidade. – A sua cara e o seu encanto atraem as pessoas, fazem com que confiem nele. Para a sua desgraça.

– Pode saber-se o que te fez? – perguntou Hetty.

– Nada – respondeu Annelise sinceramente. – Nunca fomos apresentados formalmente e espero que nunca o sejamos. O lugar desse homem não é no tipo de círculos aos quais o teu pai aspira. Assombra-me que considere sequer semelhante união...

– Oh, o meu pai diz que não posso casar-me com ele – disse Hetty despreocupadamente e deixou-se cair na cama coberta de damasco com uma total falta de decoro. – Mas eu conheço o meu pai. Sou a sua única filha. Naturalmente, quer que seja feliz, desde que consiga alguém com um título. Se quero casar-me com Christian Montcalm, casar-me-ei com ele. Afinal de contas, seria viscondessa. Não é tão bonito como ser duquesa, mas todos os duques que conheci são velhos e feios. Além disso, acho que a única coisa que Christian precisa é do amor de uma boa mulher.

Annelise desatou a rir-se.

– Receio que o senhor Montcalm se tenha servido do amor de muitas boas mulheres e que em troca lhes tenha dado muito pouco. Encontrarás outro igualmente encantador e muito menos perigoso.

Assim que aquela palavra saiu dos seus lábios, desejou ter mordido a língua. Perigoso. Que jovem impressionável, romântica e teimosa não se sentiria fascinada por um homem perigoso? Annelise nunca fora tão jovem, nem tão estúpida, mas Hetty Chipple andava à procura de problemas e, obviamente, não ia prestar atenção à sensatez.

Teria de se certificar de que Hetty não frequentava a companhia de Montcalm até que encontrasse uma alternativa adequada para a distrair. As raparigas da sua idade apaixonavam-se e desapaixonavam-se com toda a facilidade. E sem dúvida a boa sociedade londrina podia produzir pelo menos um rival atraente que distraísse a sua atenção dos duvidosos encantos de Montcalm.

Uma expressão tímida cruzou o bonito rosto de Hetty.

– Suponho que tens razão – disse com um suspiro carregado de sentimento em que Annelise não acreditou nem por um instante. – Bom, vou deixar que te instales, está bem? Eu também preciso de descansar um pouco. Tenho de estar bonita para esta noite.

– Para esta noite?

– Vamos a casa de lady Bellwhite. Tenho a certeza de que gostarás dela.

– Sempre gostei muito dos seus jardins – disse Annelise e recordou as inúmeras oportunidades de fazer travessuras que aquele lugar oferecia. – Tenho a certeza de que gostarei ainda mais deles na tua companhia.

Hetty esteve prestes a fazer uma careta, porém, conteve-se a tempo, recordando que mudara de táctica.

– Eu também – disse docemente.

Annelise esperou até que a porta se fechou para se sentar na cama enrugada. O colchão era bom e sólido. Pelo menos, havia algumas vantagens que o dinheiro podia comprar.

Tirou o chapéu e deixou-o ao seu lado. Ao fazê-lo, viu-se um momento ao espelho.

Depois de passar quase uma hora a contemplar a perfeição de Hetty Chipple, aquela visão foi ainda mais triste.

Olhou para os seus pés. Era realmente uma maldição ter os pés grandes, sobretudo se os comparasse com os pés minúsculos de Hetty. Os seus pés, certamente, eram proporcionais às suas pernas ridiculamente longas, mas mesmo assim o destino poderia ter tido a amabilidade de deixar desproporcionada alguma parte do seu corpo.

No entanto, o destino estivera ocupado noutro lugar. Ela tinha as pernas longas, os braços longos, o pescoço longo e a cara longa. Conhecia muito bem os seus atributos físicos: tinha os olhos cinzentos e bonitos, mas costumava escondê-los com os óculos, o seu cabelo era de um tom indeterminável, uma mistura de castanho, loiro e vermelho, e a única coisa que podia fazer era prendê-lo com força sobre a nuca e esperar que ninguém reparasse na sua estranha cor. Numa época, tentara usar toucas de renda para o disfarçar, o que tinha a vantagem de proclamar a sua condição de solteirona, mas as toucas escorregavam para a sua cara e produziam-lhe ardores, ou prendiam-se nas armações dos óculos e, no final, tivera de deixar de as usar.

O corte do seu vestido era amorfo, como concordava ao seu estado, e disfarçava tanto a sua estreita silhueta como os seus grandes seios.

Sim, jamais atrairia a atenção de alguém... que era justamente o que queria... Ao contrário de Hetty Chipple, que conseguiria atrair os problemas como um íman.

Levada por um impulso, levantou-se, aproximou-se da janela e olhou para as frondosas ladeiras de Green Park. Mesmo a tempo de ver a menina Chipple desaparecer entre os matagais completamente sozinha.

Não perdeu tempo a pôr o chapéu. Saiu a correr pela porta, agarrou na primeira criada que viu, correu escada abaixo e saiu para a rua, arrastando a pobre rapariga atrás dela. Por sorte, não havia nem rasto de Josiah Chipple.

Embora Annelise estivesse ali para fazer um favor ao magnata naval, continuava a ter um forte sentido de responsabilidade e não deixaria que uma rapariga corresse pelo parque sem acompanhamento enquanto fizesse parte daquela casa.

O dia estava fresco e sem dúvida as pessoas olhavam para elas com estranheza, mas estava tão decidida a apanhar Hetty antes que provocasse um escândalo que nem sequer reparou nisso. Introduziu-se entre os matagais pelos quais vira Hetty a desaparecer, com a criada atrás dela.

Viu Hetty mais adiante. Estava sozinha e parecia esperar alguém, refugiada entre a folhagem dos matagais. Não havia dúvida de quem estava à espera, nem de que Annelise teria de agir com prontidão.

Acelerou o passo justamente quando Hetty entrou por um estreito espaço da sebe. Então, agarrou-a pela parte de trás do vestido e puxou-a.

Hetty estava tão assombrada que apenas conseguiu deixar escapar um gritinho, porém, quando viu quem era, os seus olhos azuis encheram-se de raiva venenosa.

– Tu! – exclamou com desprezo. – Deixa-me em paz!

Ser quase meio metro mais alta do que ela tinha as suas vantagens. Hetty não era oponente para ela. Annelise fê-la virar-se e empurrou-a para a criada.

– Leva-a para casa imediatamente! – exclamou. – E talvez não diga ao teu pai que fugiste disposta a arruinar todos os seus planos.

Hetty abriu a boca para protestar, contudo, voltou a fechá-la. Portanto ainda havia alguma coisa que tinha poder sobre ela.

– Nunca te perdoarei por isto! – vaiou e afastou-se iradamente, enquanto a criada corria para a alcançar.

Annelise ficou ali, no meio do ar frio, a observá-las, e suspirou.

Os desafios não a assustavam, mas a sua madrinha não lhe dissera que aquela rapariga era tão rebelde. Talvez tivesse de comunicar as suas inquietações ao senhor Chipple, mas não antes de tentar persuadir Hetty a abandonar aquele capricho. Chipple talvez não conhecesse até que ponto Montcalm era um depravado, já que não frequentara os círculos onde se comentava a indigna reputação daquele homem, porém, Annelise ouvira histórias suficientes sobre a absoluta perfídia de...

– Suponho que aquela é a menina Chipple – disse ao seu ouvido uma voz carregada de ironia.

Era uma voz quente, a mesma voz que ouvira um pouco antes em casa dos Chipple, contudo, Annelise ficou gelada. Considerou as suas alternativas. Podia ignorar aquela voz, seguir as outras duas mulheres e não voltar o olhar para trás. Ou podia virar-se, enfrentar a causa de todos aqueles inconvenientes e pô-lo no seu lugar.

Nunca fora uma covarde e não ia começar a sê-lo naquele momento. Embora uma pequena parte do seu ser tivesse a impressão de que ia virar-se para enfrentar uma gárgula, sabia perfeitamente que não se transformaria em pedra, nem numa coluna de sal, nem em nada absolutamente. No entanto, quando se virou, sentiu que ficava tão rígida como uma das estátuas do senhor Chipple.

Nunca antes estivera tão perto dele. Os seus encontros anteriores tinham sempre acontecido em salas repletas de pessoas, onde ela ouvira murmúrios a respeito das mulheres com quem dançava ou que seduzia. Christian Montcalm estava muito longe do seu alcance e nunca teria reparado na sua existência. Ela era, simplesmente, mais uma das meninas feias e muito trôpegas que esperavam encostadas às paredes das salas. Observara-o, fascinada, e, com um suspiro desdenhoso, dissera para si que era bonito até ao limite.

Mas, Céus! Até que ponto o era... Tinha o cabelo escuro e longo, preso com simplicidade, mas uma madeixa acariciava a sua maçã do rosto. Annelise sempre sentira afeição por maçãs do rosto bem marcadas. Os seus olhos, ligeiramente rasgados, eram de um verde profundo e cativante. Nunca antes estivera tão perto para os ver bem, mas tinham um vislumbre de bom humor que era indubitavelmente atraente. E a sua boca, os seus lábios... Com razão seduzia todas as mulheres que conhecia e era capaz de as persuadir a fazerem coisas inomináveis. Só a sua boca carnuda e cheia podia seduzir uma freira.

E era mais alto do que ela. Annelise esperava que assim fosse, visto que Montcalm ficava muito por cima da maioria das suas parceiras de baile, contudo, que a sua estatura a fizesse sentir-se delicada era outra circunstância desafortunada. Aquele homem era praticamente irresistível, sobretudo quando olhava para ela com aqueles olhos divertidos.

No entanto, Annelise era feita de um material mais resistente. Engoliu em seco, recuperou a fala e agradeceu o facto de a sua voz soar serena e fria.

– Era a menina Chipple – disse. – E não devia estar aqui para se encontrar com um cavalheiro sem ninguém que a acompanhasse. Embora, para começar, nenhum cavalheiro devesse ter aceitado semelhante encontro.

Ele não pareceu alterar-se.

– E isso por acaso é da tua incumbência? Hetty não me disse que tinha um monstro a espiar cada um dos seus movimentos. Teria sido mais discreto.

– Duvido que saiba o que é a discrição – replicou Annelise. – Sou uma amiga da família e vou fazer companhia a Hetty enquanto faz a sua estreia em sociedade.

– Não, não é verdade – disse ele, inclinando a cabeça para olhar para ela com mais atenção. – Os Chipple conhecem muito poucos membros da alta sociedade e está claro que tu não pertences ao seu mundo. Não és uma preceptora, porque não és suficientemente dócil. Se não me engano, és uma mulher de boa família que teve azar. Portanto, quem és exactamente?

Annelise pensou em algumas respostas, a maioria delas próprias de um estábulo. Aprendera palavrões muito coloridos graças aos moços de estrebaria do seu pai, mas tentava guardá-los para ela.

Estava um dia frio de Primavera, porém, Montcalm irradiava calor e aqueles olhos exóticos eram muito... perturbadores.

– Sou alguém que vai tornar impossíveis os seus propósitos em relação à menina Chipple – disse. – Portanto vá-se embora e leve o seu charme para outro lado.

Ele desatou a rir-se. Como tudo nele, a sua gargalhada era irresistível.

– Isso parece um desafio. E um cavalheiro nunca resiste a um desafio.

– Pensei que tínhamos deixado claro que o senhor não é um cavalheiro.

Ele nem sequer pestanejou diante daquele insulto.

– Mataria um homem por dizer isso – disse suavemente.

– Então é uma sorte para mim que tenha certos princípios, apesar do que se diz por aí. Adeus, senhor Montcalm.

Outra figura saiu de entre os matagais, um homem mais baixo e magro, com o cabelo despenteado e uma expressão imprecisa que indicava que não primava pela sabedoria, ou que bebera demasiado vinho. Annelise não se incomodou em descobri-lo.

– Quem é essa girafa, Christian? – perguntou aquele homem. – E onde está aquela menina tão bonita? Ia ficar de guarda, mas acho que prefiro ir beber alguma coisa para me aquecer um pouco.

– Podes ir, Crosby – murmurou Montcalm sem desviar o olhar de Annelise. – Eu ainda tenho um assunto para resolver.

– Com ela não, homem! – protestou Crosby. – Essa mulher é horrível! E velha, além disso. Não é o teu tipo.

– Estou aberto a todas as possibilidades – murmurou Montcalm com voz sedosa. – E não é assim tão velha e, se conseguir tirar-lhe aqueles óculos, talvez seja bastante entretida.

– Não há nenhum modo de te pores debaixo das saias dessa, amigo. Conheço bem o tipo. São tão hirtas que nem sequer se dobram pela cintura.

Annelise já ouvira o suficiente.

– Bom dia, cavalheiros – disse, sublinhando a palavra «cavalheiros» com um laivo irónico. Passou regiamente junto a Crosby, porém, Montcalm limitou-se a soltar novamente aquela gargalhada perigosamente sedutora.

– Voltaremos a ver-nos, dragona – disse e, por alguma razão, aquele termo soou mais afectuoso do que insultante.

Com razão aquele homem era tão perigoso, de facto, nem sequer ela era totalmente alheia ao seu encanto perverso.

– Duvido – deu meia volta e afastou-se com as costas muito rígidas e os ombros erguidos, tão digna como foi capaz sem casaco nem chapéu.

Não olharia para trás, certamente estavam a rir-se dela, nem iria desatar a correr. Mesmo que demorasse uma eternidade, subiria a colina calmamente até à rua e atravessá-la-ia sem pressas para chegar à mansão dos Chipple. Não deixaria que Montcalm visse que, pela primeira vez em anos, estava prestes a começar a chorar.

– Canalha – resmungou em voz baixa e gostou de como aquele insulto soava. – Maldito canalha sem escrúpulos – ainda melhor.

Começava a recuperar. As lágrimas desapareceram, a casa estava à vista e, da próxima vez que se encontrassem, estaria preparada.

Contudo, iria fazer tudo o que pudesse para que não houvesse uma próxima vez.

 

 

– Quem demónios era aquela? – perguntou Crosby. – Disseste-me que ias encontrar-te com a herdeira.

Christian Montcalm virou-se para olhar para o seu amigo, que estava um pouco bêbado. Crosby nunca fora o seu amigo mais confiável, contudo, ele não costumava relacionar-se com gente de muita confiança.

– A dragona intrometeu-se. Mas não te preocupes, haverá outras oportunidades.

– Tu é que devias preocupar-te. Se não conseguires algum dinheiro em breve, vais acabar no rio.

– Tolices – afastou a madeixa solta da cara. – Esta noite há um jogo de cartas e posso ganhar mais do que o suficiente para sair da lama até que o noivado seja anunciado.

– Mas nem sempre podes confiar nas cartas, amigo. Às vezes não ficam do teu lado.

Christian sorriu. Não ia dizer a Crosby que não só tinha uma estranha sorte no que dizia respeito às cartas, como também era suficientemente hábil e sem escrúpulos para fazer alguma coisa a esse respeito se as cartas não o favorecessem.

– Não me parece que tenha algum problema – voltou a fixar o olhar na figura alta que se afastava deles.

Ela quase se perdera de vista, o que era uma pena. Era realmente muito divertida, muito mais interessante do que aquela beldade fastidiosa. A sua conversa com a menina Chipple, quando não fechava a sua boca com beijos tentadoramente castos, consistia numa interminável sucessão de elogios. Tal beleza demandava constantes lembranças de que era, com efeito, incomparável. Aquilo era muito tedioso.

A dragona era muito mais interessante. Era verdade que já não era jovem, mas ele tivera amantes muito mais velhas e divertira-se tremendamente com elas. Não podia ter mais de trinta anos, portanto, afinal de contas, era mais jovem do que ele, o que achou engraçado, já que falara com ele como uma tia solteirona que repreendia um menino travesso.

Mas, enfim, ele era um menino travesso. E tinha intenção de se tornar muito mais travesso. E a dragona era justamente o tipo de mulher com que podia fazer travessuras.

Não o faria, é claro. Era um homem pragmático e apontara a sua mira muito claramente para a menina Hetty Chipple, a vulgar, riquíssima e deliciosa rapariga que acabava de lhe ser arrebatada. Casar-se com uma jovem herdeira, rica e obediente, era justamente o que precisava para sair dos problemas do momento e, embora Hetty parecesse ter carácter, não tinha nenhuma dúvida de que saberia dominá-la. Tinha trunfos suficientes na manga para conseguir fazer com que fosse dócil e se comportasse bem. O sexo surtia os efeitos mais interessantes sobre as virgens e ele conhecia algumas formas de a desequilibrar. Além disso, seria extremamente agradável, tendo em conta aquele seu lindo corpo.

Depois, quando Hetty se tornasse chata, como acontecia sempre, poderia tentar conhecer melhor a dragona, que, suspeitava, seria muito mais interessante e pressuporia um desafio muito maior.

Que aspecto teria sem os óculos? Como seria sem roupa? Teria as pernas longas e ele era suficientemente perspicaz para se aperceber de que, apesar da sua magreza, tinha um bom peito. Sim, seria muito agradável vê-la nua.

Assim que conseguisse convencê-la disso.

No entanto, tudo a seu tempo.

– Vamos jogar às cartas, Crosby – disse amavelmente. – E depois talvez decida ir à noite de lady Bellwhite para continuar a insistir no meu propósito.

– Com a herdeira? Ou com a gigante?

Christian olhou para ele. Crosby nunca fora muito inteligente, porém, de vez em quando mostrava-se surpreendentemente ardiloso. Ou talvez ele tivesse sido demasiado transparente. Não, isso era impossível. Passara muitos anos a aperfeiçoar a sua fachada encantadora e impassível.

– Conheces-me bem, Crosby?

– Bastante bem.

– Então saberás que sou, acima de tudo, um homem prático. A menina Chipple tornar-se-á a futura viscondessa de Montcalm e, se a dragona cair pelo caminho, tanto melhor.

– És uma inspiração – disse Crosby fervorosamente.

– Com efeito – murmurou Montcalm, enquanto a dragona se perdia de vista. – Eu sei.